Darcy Ribeiro e o pensamento insubordinado
Resumen
Este trabalho apresenta aspectos críticos e descolonizados do pensamento do antropólogo Darcy Ribeiro, a partir de observações sobre sua teoria da civilização. Como metodologia se utilizou a análise bibliográfica do autor e de seus estudiosos. Identificou-se a construção de uma nova narrativa da história da humanidade: o antropólogo, educador, político e romancista Darcy Ribeiro propôs uma reelaboração da teoria da civilização a partir de sua perspectiva insubordinada à antropologia da civilização produzida pelo cânone da Europa e dos Estados Unidos. Motivado pelo anseio de compreender e superar o subdesenvolvimento latino-americano e consequentemente, o brasileiro, Ribeiro criou novas categorias a fim de entender a história da humanidade sob uma perspectiva não eurocêntrica em que fosse possível a valorização dos povos latino-americanos após o contato com o europeu. Darcy Ribeiro iniciou sua trajetória intelectual como antropólogo e teve grande parte de sua vida direcionada à produção de obras etnográficas em defesa da causa indígena e da educação. Criou a Universidade de Brasília (1961) e foi Ministro da Educação (1962) no governo de João Goulart. Chegou ao cargo de ministro-chefe da Casa Civil (1963), de onde coordenou a implantação de reformas estruturais pretendidas pelo governo até o momento de sua interrupção pelo golpe militar (1964) que o forçou ao exílio no Uruguai. A partir de então o seu interesse se voltou para América Latina.
O mesmo aconteceu a outros políticos e intelectuais brasileiros, a situação de exílio em países latino-americanos em consequência da Ditadura Militar aproximou-os do debate sobre a América Latina: Leonel Brizola, Ruy Mauro Marini, Ferreira Gullar, Fernando Henrique Cardoso, Glauber Rocha, entre os exemplos mais expressivos, certamente está Darcy Ribeiro. Ao exilar-se, primeiramente no Uruguai, onde exerceu o cargo de professor de Antropologia da Universidade da República Oriental do Uruguai, o escritor brasileiro gestou parte de sua obra antropológica, entrou em contato com diferentes intelectuais uruguaios, criou intensos laços de amizade e se reconheceu como latino-americano (COELHO, 2002, p.212). A partir dessa experiência, nota-se uma mudança na sua produção intelectual evidenciada por obras como La Universidad Latinoamericana y el Desarrolllo Social (1967), Las Américas y la Civilización – Proceso de formación y causas del desarrollo desigual de los pueblos americanos (1968) e O Dilema da América Latina: Estructuras de poder y fuerzas insurgentes (1971). Assim como sua obra, não ficou restrito às fronteiras e morou em diversos países da região, atuando prioritariamente em temas relacionados à educação e integração regional, sem perder de vista, contudo, a temática indígena.
Passada a melancolia inicial do exílio em meio a leituras de ciência e ficção, Darcy Ribeiro voltou a levar uma vida intelectual intensa, começou a fazer um programa de reforma universitária e assumiu um questionamento que viria a ser o fio condutor de toda a sua produção intelectual: “Porque o Brasil ainda não deu certo?” (GRUPIONI, L. D. B, 1997, p. 180). Para chegar a alguma conclusão, Ribeiro percebe a necessidade de uma teoria capaz de explicar o Brasil, uma vez que as existentes não o faziam. Propõe a si mesmo reelaborar a teoria da evolução humana com base no desenvolvimento tecnológico e compreender dez mil anos de história de forma não eurocêntrica. Seguindo a intenção de entender o Brasil lança cinco obras que juntas conformam seus estudos civilizatórios: Processo civilizatório: etapas da evolução sociocultural (1968); As Américas e a civilização: processo de formação e causas do desenvolvimento cultural desigual dos povos americanos (1970); Os índios e a civilização: a integração das populações indígenas no Brasil moderno (1970); O dilema da América Latina: estruturas do poder e forças insurgentes (1978); e O Povo Brasileiro (1995).
A obra o Processo civilizatório responde também ao interesse crítico que A origem da família, da propriedade privada e do Estado, de Frederich Engels despertou em ribeiro desde o início de seus estudos de graduação somado ao efeito da publicação tardia de Grundrisse, de Karl Marx. Com uma abordagem que não se restringia ao continente europeu, a teoria busca apresentar definições de características permanentes atuantes dos povos americanos em contato com as forças da expansão europeia decorrentes da revolução mercantil e industrial tendentes a integrá-los numa civilização humana comum (Ribeiro, 1975, p. 15). O livro recebeu a apreciação da revista Current Anthropology na modalidade de debate e divulgação de estudos científicos, conhecida como CA Treatment que consiste em submeter à apreciação crítica de antropólogos interessados no tema e enviar as avaliações ao autor para que produza sua réplica. Ao final, tudo é publicado conjuntamente. O presente buscou sublinhar os aspectos insubordinados e descolonizados da teoria de Ribeiro apresentados nessa publicação.
A teoria de Darcy Ribeiro desloca a categoria de análise do modo de produção para os meios de produção, encontrando na tecnologia um elemento mais preciso para entender as etapas evolutivas dos distintos povos. Nesse sentido, opunha-se ao etnocentrismo de Karl Marx que abordou uma única linha de evolução histórica como geral. O Processo Civilizatório divide a evolução em uma sequência de oito revoluções tecnológicas: agrícola, urbana, do regadio, metalúrgica, pastoril, mercantil, industrial e termonuclear. E aborda de maneira original o feudalismo compreendendo-o não como uma etapa evolutiva ou um processo civilizatório gerador de uma formação sociocultural específica, mas como uma regressão cultural seguida do mergulho no estancamento socioeconômico em que pode tombar qualquer sociedade no nível de civilização urbana (Ribeiro, 2016, p 110). Sua teoria era otimista, uma vez que objetiva entender e superar o desenvolvimento. Tinha fé no progresso. Previa uma sociedade mais homogênea e a redução do número de complexos étnicos como consequência. Percebia o caráter acumulativo do progresso tecnológico que possibilitava a aceleração do ritmo evolutivo entre as revoluções, e mesmo sendo uma teoria evolucionista, admitia regressões como seu entendimento de feudalismo mostra. O esquema apresentado por Darcy Ribeiro traz um complexo de oito revoluções tecnológicas, 12 processos civilizatórios e 18 formações socioculturais, algumas divididas em dois ou mais complexos complementares.
Dessas diferentes formações socioculturais, conforme experimentassem uma aceleração evolutiva - dominando autonomamente nova tecnologia - ou uma atualização histórica - sendo subjugados por sociedades mais desenvolvidas tecnologicamente - surgem os tipos de configurações histórico-culturais dos povos americanos que Ribeiro separa em quatro categorias, a fim de conhecer aceleradores ou retardadores de sua integração no estilo de vida das sociedades industriais modernas: Povos-testemunhos - representantes de altas civilizações que sofreram o impacto da expansão europeia: Índia, China, Indochina, Japão, Coréia e países islâmicos; México, Guatemala e Altiplano Andino (descendentes de Maias, Astecas e Incas). Passaram por uma desintegração cultural e transfiguração étnica e têm como desafio a inclusão do enorme contingente de marginalizados como indígenas; Povos-novos – cada vez mais mestiçados e uniformizados, e desse modo, homogeneizados racial e culturalmente. Distanciados culturalmente de sua matriz étnica pela deculturação e aculturação: Brasil, Colômbia, Venezuela e sul dos Estados Unidos. Precisam superar as heranças do sistema de plantation. Povos-transplantados - perfil caracteristicamente europeu, de tipo racial predominantemente caucasoide e mais maduramente capitalista. Estão presentes em zonas temperadas e possuem homogeneidade cultural: Argentina, Austrália, Canadá, Estados Unidos, Nova Zelândia e Uruguai. Mais suscetíveis à discriminação e segregacionismo (preconceito de origem e de marca) com minorias raciais bem definidas; Povos-Emergentes - ainda não presente nas Américas. Paralelamente à homogeneização dos povos na modernidade industrial desenvolvem-se resistências que preservarão múltiplas faces étnicas singulares: populações africanas e asiáticas que ascendem da condição tribal à nacional. Terão que alcançar o reconhecimento de sociedades políticas multiétnicas e consolidação de Estados multinacionais.
Mesmo que sua tipologia seja considerada ideologicamente artificiosa (Rouquié, 1991, p. 35), não é mais nem menos do que as desenvolvidas por outros teóricos como L.H. Morgan, F, Engels, V Gordon Childe, Julian Steward, entre outros, que se lançaram em empreendimentos dessa natureza. A teoria de Darcy Ribeiro perturbou o meio antropológico como evidenciam as críticas publicadas na Current Anthropology, o que mostra que o livro estimula novos exames de suas generalizações. A obra é marcada pela ambivalência de sua postura teórico/militante. Em oposição às representações totalizantes, “O Processo Civilizatório” explicita uma plêiade de formações socioculturais, por vezes simultâneas e interdependentes, que questionam as hierarquizações do colonizador. “A posição em que se encontra uma sociedade não corresponde a qualidades inatas ou a qualidades imutáveis de sua cultura, senão, em larga medida, às circunstâncias susceptíveis de transformação” (RIBEIRO, 2001, p. 135). Conclui-se que, sua ousadia em denunciar o subdesenvolvimento como uma ferramenta de aceleração evolutiva de outros povos e não como uma etapa evolutiva dos povos que o vivenciam é um exemplo da sua busca por uma teoria que sustente a superação do subdesenvolvimento latino-americano, reconhecendo suas conformações étnicas, a partir de um esforço epistemológico original e insubordinado.
PALAVRAS-CHAVE: Darcy Ribeiro, Antropologia da civilização, América Latina, insubordinação e descolonização do pensamento.
Citas
COELHO, Haydée Ribeiro. O exílio DE DARCY RIBEIRO NO URUGUAI. Disponível em https://www.ufmg.br/aem/inicial/Artigo_Haydee.pdf. Acesso em 03 de junho de 2017.
GRUPIONI, LUÍS DONISETE BENZI e FARJADO GRUPIONI, MARIA DENISE. Entrevista com Darcy Ribeiro. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 3, n. 7, p. 158-200, nov. 1997. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71831997000300010. Acesso em 03 de junho de 2017.
RIBEIRO, Darcy. Configurações histórico-culturais dos povos americanos. Rio de Janeiro. Global Editora e Distribuidora Ltda. 2016.
______. O processo civilizatório. Etapas da evolução sociocultural. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
ROQUIÉ, Alain. Introdução a América Latina: o extremo ocidente. São Paulo. EDUSP, 1991.
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