Nova chamada Prorrogada: O ensaio literário latino-americano: interrogações sobre um gênero fronteiriço

2024-08-21

Perguntou-se o colombiano Germán Arciniegas em 1979: “a que se deve a predileção pelo ensaio – como gênero literário – na nossa América? Foram escritos ensaios entre nós muitos anos antes de Montaigne nascer”.Arciniegas, ele mesmo ensaísta e autor de questionamentos sobre o papel do ensaio para a independência – e a posterior e intrincada busca pela verdadeira autonomia – dos países do continente, tratou de desenhar respostas possíveis. Escreveu, por exemplo, que “a razão dessa singularidade é óbvia. A América surge no mundo, com sua geografia e seus homens, como um problema. É uma novidade insuspeitada que rompe com as ideias tradicionais. A América, em si mesma, já é um problema”.

“E mesmo o próprio romance, entre nós, costuma ser um ensaio disfarçado”, dirá também o escritor e professor colombiano, o que nos leva, e ao ensaio, a outro ponto: a vinculação (as proximidades, as diferenças, os critérios) que separam a estrutura escapante do ensaio com a dos gêneros vizinhos. Se o romance latino-americano pode ter nascido como “ensaio disfarçado”, ao longo das décadas ensaio e romance percorreram numerosos caminhos em que se afastaram e voltaram a se encontrar. Em “O ensaio e seu tema”, César Aira sugere que “uma diferença entre ensaio e romance é o lugar que o tema ocupa em um e no outro. No romance, o tema se revela no final, como uma figura desenhada pelo que se escreveu. No ensaio, é o contrário: o tema vem antes, e é esse lugar que garante o tom literário do resultado”.

Mesmo a antecipação do tema, no entanto, se é certo que pode diferenciar o ensaio do romance, tampouco acaba por levar a definições paralisadas do gênero: como definir com alguma exatidão, por exemplo, o volume De plantas y animales, da uruguaia Ida Vitale, senão como um conjunto – ensaístico – de textos em prosa (escritos antes que nada por uma poeta) que percorrem a anotação do diário, o exercício descritivo, a busca inquietante por uma forma entre a literatura e a botânica?

No ensaio contemporâneo levado adiante por escritores e escritoras do continente, o gênero também se move pela ideia do fragmento e da sequência de brevidades: pensemos no caso de Vivir entre lenguas, de Sylvia Molloy, em que cada ensaio-breve gira sobre uma mesma ideia, sempre disposta a recomeçar: o questionamento do bilinguismo, do atravessamento de um idioma no outro, os sotaques, as dicções que são moldadas num entre-lugar ou num lugar de fronteira (entre países ou entre autores ou entre línguas). Já se vê quão numerosos são os “modos do ensaio”, para tomar emprestada a expressão do ensaísta e pesquisador santafesino Alberto Giordano, que tratou de percorrer, de Borges a Piglia, as diferentes trilhas do ensaio argentino ao longo do século XX.

Sempre em trânsito, a prática do ensaio configura-se como gesto em um território livre para o fluxo de diferentes áreas e saberes (filosóficos, científicos, populares), espaço e tempo possíveis para quem escreveu fora da tradição e das amarras da educação formal, do academicismo e do mercado editorial. Este espaço-tempo transformado em prática ensaística, aberta ao diálogo e à multiplicidade, continua proporcionando que vozes paralelas ecoem e se misturem, sendo veiculadas, sobretudo, em revistas e jornais. Não é por acaso que, margeando o caminho científico-acadêmico, Heloísa Buarque de Holanda e Lucia Nascimento Araújo reúnem, em Ensaístas Brasileiras (1993), 622 verbetes sobre mulheres que ensaiaram nos últimos cento e cinquenta anos de Brasil.

O ensaio continua sendo, portanto, tanto pela sua forma de possibilidade como pela de especulação, o lugar onde o pensamento livre se sente disposto a transitar: é o que observamos no exercício ensaístico em escritoras latino-americanas como Lélia González, Beatriz Nascimento, Ana Pizarro, Tamara Kamenszain e Graciela Speranza, entre tantas outras.

São vastas as rotas que podem levar à interrogação do ensaio – aqui, o ensaio contemporâneo, relativo ao presente e às últimas décadas nas literaturas da América Latina – e este dossiê proposto pela revista Frontería está aberto para o recebimento de artigos e resenhas que se debrucem sobre as particularidades deste gênero: quer seja de estudos sobre a forma do ensaísmo contemporâneo, da análise de textos paradigmáticos do gênero e de pesquisas que se dediquem ao caráter fronteiriço dessas produções.

Organização: Iuri Müller (Unila) e Luciéle Bernardi de Souza (UFSC).

Submissões até o dia 31 de Janeiro de 2025.