PERSPECTIVAS DE GÊNERO SOBRE A FACE DA PANDEMIA:
UMA BREVE ANÁLISE À LUZ DO ECOFEMINISMO MARXISTA
Palabras clave:
Ecofeminismo Marxista, Gênero, covid-19, NaturezaResumen
Introdução
Até o fechamento desta pesquisa, o Brasil alcança a média móvel de 2.152 mortes em 24hrs – a maior já registrada desde o início da pandemia (G1, 2021). Enfrentamos uma crise sanitária e humanitária apontada com a maior dos últimos cem anos; a interrupção de trabalhos, o aumento de pessoas em situação de subemprego, a intensificação da violência de gênero, a normalização da morte e a fome de volta para a mesa de muitos – sobretudo da parcela da população mais vulnerável – fora alguns dos reflexos cruéis da resposta defasada e insuficiente dos estados-nação à pandemia. É importante pontuar, portanto, que nossa atual conjuntura e uma grande parcela de sua letalidade repousam na essência do sistema capitalista. Este sistema é responsável por cultivar condições para que essa crise - costurada à outras demais - se dissemine no seu mais profundo grau, fomentando a barbarização da vida e da natureza.
A origem do novo coronavírus, e de outros vírus de nosso recente século, possuí um vínculo frontal na relação entre indivíduos e natureza que interagem sobre a base desta estrutura hierarquizada e opressora. A gradativa penetração do capitalismo nos sistemas naturais, através do esgotamento de solos, saque e pilhagem de recursos naturais das terras originárias por meio da prática (neo)extrativista e o envenenamento processual da água e do ar, são responsáveis por criar brechas nos ecossistemas, o que possibilita as epidemias emergentes que, assim como a mudança climática, são de origem antropogênica. O capital consome e explora em total descaso, sem considerar a desaceleração ou os impactos da poluição e de emissão de gases do efeito estufa, produzindo efeitos colaterais, sobretudo, aos povos marginalizados do Sul Global. É indubitável que esta pandemia é o desenlace da perpetuação da guerra do capital contra a natureza e, portanto, da guerra do capital contra os corpos plurais e diversos de mulheres ao redor do globo.
A incerteza de natureza irrestrita, que se soma ao acúmulo da crise do sistema multilateral, da democracia, da saúde pública mundial, da economia e da natureza, nos coloca no cerne do que se desenvolve em uma extensa crise metabólica. Ainda que a pandemia tenha nos afetado universalmente, esse fator não significa, por condição, que nos atravessou de forma democrática e imparcial. Nesse sistema substancialmente patriarcal e racista, a vulnerabilidade e precarização das vidas é seletiva. O presente ensaio pretende, portanto, realizar uma reflexão sobre a relação entre gênero e natureza frente a atual pandemia do COVID-19 à luz da perspectiva ecofeminista marxista, dessa forma utilizar-se-á o método de pesquisa qualitativa e o materialismo histórico. A partir disto, busca-se compreender a importância da consciência ecológica de gênero e como a atual crise ecológica e sanitária reverbera sobre mulheres.
- ECOFEMINISMO MARXISTA: A RELAÇÄO HIERARQUIZADA DO CAPITAL SOBRE MULHERES E A NATUREZA
Fomentada pela lógica dos conquistadores e do exercício de seus imperialismos, durante séculos – e até os dias atuais – a lógica colonialista ocidentalizada passou a reger nossos modos de governo e o formato de estruturação de nossas sociedades em sociedades capitalistas. O padrão de cumprimento civilizatório antropocêntrico, patriarcal, monocultural e do agronegócio promoveu a dominação da natureza, o apagamento das relações da figura do ser-humano e a sinergia com o meio ambiente e a hierarquização das explorações. Sua dinâmica altamente destrutiva, de mercantilização de todos os ramos de nossas vidas, de expansão a qualquer custo, tem minado, aceleradamente, uma crise ambiental e climática terminal; sobre as quais não temos dimensões anteriores na história.
Os marcadores de gênero, construído e nos embutido socialmente, são atravessados pelas relações de poder (SAFFIOTI, 2015), sobre as quais o homem figura-se no papel da centralidade, da autoridade e do domínio sobre tudo aquilo que pensa que o pertence de forma material e mercadológica, como as mulheres e a natureza. O sistema capitalista, baseado na separação de seres-humanos, e na superioridade sobre outras espécies, corroborou para a justificação do domínio comoditizado sobre a natureza. Portanto, o patriarcado capitalista objetiva a natureza como matéria inerte e as mulheres como seres passivos, as quais naturalmente carecem de racionalidade superior e que ocupam trabalhos marginalizados e precarizados, ocupando-os sem nenhuma garantia de seus direitos.
Assim como aponta Salleh (1992), as imagens patriarcais de gênero estão imersas em instituições sociais que coligam as mulheres aos eixos “feminino-emocional-caótico-obscuro-natureza”. Dessa forma, afirma:
Nas culturas patriarcais, os homens gozam do direito de explorar a natureza do mesmo modo que exploram as mulheres [...] O trabalho e a sexualidade das mulheres, por este meio, são utilizados pelos homens de maneira similar de como exploram a natureza [...] corroborando para as noções patriarcais que pautam nosso corpo (Salleh, 1992, p.90-91, tradução nossa)
As mulheres são, portanto, portadoras de um papel socialmente originado da sociedade de classes, da propriedade privada e do Estado (ENGELS, 2010). Por este meio, a mudança no papel exercido por mulheres ocorreu por meios de violências estruturais que cumprisse a função de domesticação a uma conduta de exploração do trabalho pautado pelo gênero e vinculada a dominação de classes. O sistema de dominação patriarcal baseado na divisão sexual do trabalho, costurado aos marcadores raciais e de classe, ataram as mulheres, sobretudo indígenas, campesinas, negras, quilombolas e de identidade originária, a maior parte da força de trabalho rural; ao mesmo tempo em que se tornaram as principais responsáveis pelo trabalho de reprodução social. Devido seu papel central em promover a alimentação, a vestimenta e o abrigo para os seus, as mulheres, como apontam Arruzza, Bhattacharya e Fraser (2019) “representam a parcela descomunal no trabalho de lidar com a seca, a poluição e a superexploração da terra˜, sendo forças centrais de resistências concretas a este modelo reprodutivo de expansão do capital e encontrando-se, na maioria das vezes, nas linhas de frente na luta contra a crise climática, crise ambiental, racismo ambiental, a consolidação de uma soberania alimentar e o reconhecimento das mulheres e da natureza como um ser de direitos.
- MULHERES E NATUREZA FRENTE A PANDEMIA DO COVID-19
A pandemia de Covid-19, ao qual passamos a enfrentar na América Latina a partir de fevereiro, escancarou a realidade: o desastre do mundo capitalista. Se hoje enfrentamos uma crise ecológica, ambiental e sanitária, diretamente ligada ao capital, é importante ressaltar que as camadas dessa crise também reproduzem e agravam a opressão de gênero, que se norteiam com o componente de classe e de raça no processo de sobreposição de violências das dominações existentes, e da superexploração da natureza. Como afirma Fernandes (2020), o capitalismo é um sistema que gera contradições que geram crises, lidas como “meras interferências” a sua estrutura. A pandemia do covid-19 portanto acelera os impactos da profunda crise estrutural do sistema capitalista, ampliando processos de violência estatal, expropriação de direitos, incêndios criminosos promovidos pelo agronegócio na Amazônia, Cerrado e Pantanal, além da desterritorialização e cerceamento de direitos dos povos indígenas. Desta forma,
O enorme impacto ambiental de nossa era não é resultado de simples ação humana, mas da ação humana no sistema capitalista. Se o capitalismo é um sistema de acumulação contínua, essa acumulação tem que ser baseada em algo; no caso, na exploração da força de trabalho e dos materiais da natureza (FERNANDES, 2020, p. 81-82).
Como o capitalismo opera enquanto sistema global, diante destes momentos de crise tende a pressionar mais ainda a classe trabalhadora, intensificando profundamente a precarização do trabalho e da própria vida (Paim, 2020). Essa precarização também é um formato de alavancar a violência contra mulheres, cis e trans, sobretudo de grupos étnicos minoritários, através da invisibilização, do descaso promovido pelo governo federal, a materialização da violência doméstica e a normalização da destruição da natureza e dos lares e corpos dos povos tradicionais, em uma ação puramente genocida.
As formas de violência contra mulheres continuam sendo decorrentes das relações entre patriarcado e capitalismo. Como afirma Frederici (2017), a guerra contra mulheres é condição necessária para a existência do capitalismo em qualquer conjuntura; a divisão sexual e racial do trabalho conjura as mulheres em um eixo de raízes de exploração e opressão que as confina, dentro da violência estatal, ao trabalho reprodutivo. Os efeitos colaterais das crises do capital e a constante intensificação da destruição da terra são sentidos de maneira singular pelas mulheres, não pela essência feminina, mas pela relação hierarquizada nos imposta pelo capital de prover, reproduzir e cuidar.
Considerações finais
O pensamento e a práxis ecofeminista foi responsável por revelar as conexões das crises ambientais e climáticas com a deterioração da condição de vida das mulheres, sobretudo do Sul Global, demarcando como gerar uma consciência ecológica de gênero nas próprias análises feministas, inclusive no feminismo marxistas, era um fator de grande importância para compreensão do papel das relações hierárquicas e de opressão, e de como a libertação das mulheres também envolve a libertação da natureza.
O papel das mulheres na resistência e na luta pela preservação das terras, pela justiça ambiental, asseguração de direitos básicos – como a moradia e a alimentação –, além de serem grandes articuladoras de redes e casas de acolhimento e solidariedade, cozinhas coletivas, atuando como lideranças políticas nos seus campos, aldeias e nas favelas. É luta é travada por mulheres, desde a linhas de frente do combate ao covid-19 à sobrevivência e autonomia de gerir sua própria vida; não ficamos paradas, nem mesmo frente a crise sanitária e humanitária que enfrentamos, nos movimentamos.
O futuro imediato não parece nem um pouco promissor, principalmente para as mulheres, as quais sofrem mais duramente as consequências das crises do capital. No entanto, a luta das mulheres pelo viés coletivo e solidário levanta esperanças de que a libertação de nossos corpos, e da natureza, poderá se tornar possível através da luta marxista e ecossocialista.
Citas
Referencias bibliográficas
PAIM, Elisangela Soldateli [Org.]. 2021. Resistências e re-existências: mulheres, território e meio ambiente em tempos de pandemia. Editora Funilaria, São Paulo.
ARRUZZA, Cinzia; BHATTACHARYA, Tithi e FRASER, Nancy. 2019. Feminismo para os 99% : um manifesto. Boitempo, São Paulo.
FERNANDES, Sabrina. 2020. Se quiser mudar o mundo: um guia político para quem se importa. Editora Planeta, São Paulo.
DILGER, Gerhard; LANG, Miriam; FILHO, Jorge Pereira [Orgs.]. 2020. Descolonizar o imaginário: debates sobre pós-extrativismo e alternativas ao desenvolvimento. Fundação Rosa Luxemburgo, São Paulo.
SALLEH, Ariel. 1992. Ecosocialismo-Ecofeminismo. Ecología política 2, 89-92. [es]
SAFFIOTI, Heleieth. 2015. Gênero, Patriarcado, Violência. Expressão Popular, São Paulo.
ENGELS, Friedrich. 2014. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. BestBolso, São Paulo.
FEDERICI, Silvia. 2017. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Editora Elefante, São Paulo.
G1. 2021. Brasil registra 2.152 mortes em 24 horas; média móvel volta a bater recorde e número de casos também. São Paulo. Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2021/03/12/brasil-registra-2152-mortes-em-24-horas-media-movel-volta-a-bater-recorde-e-numero-de-casos-tambem.ghtml. Acesso em: 14 mar. 2021
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